Espiritismo e Cristianismo
Eduardo Soveral Torres Porto – Portugal - Agosto 2021
O Espiritismo propõe-se construir uma doutrina que concilie o conhecimento humano com as informações colhidas do reino dos mortos. Assumindo-se como marcadamente anti-materialista, entendendo o materialismo como a concepção que apenas reconhece a validade do conhecimento obtido através dos sentidos, isto é o que pode ser observável e comprovado. Assim o espiritismo seria uma doutrina abrangente dando uma perspectiva mais real e verdadeira da vida, pois abarcaria não só a presente existência mas também a existência futura. De alguma forma ela preencheria o vazio deixado pela ciência. O que diz então a doutrina espírita? Ela assenta no seguinte conjunto de afirmações: 1- Há uma sequência – nascimento – morte – vida após a morte – reencarnação. 2- O segundo ponto é a possibilidade de comunicação com os espíritos mortos com o intuito de conhecer esse lado da vida 3- Depois há a construção da sua moral e para isso o espiritismo apropria-se do que ele entende ser a moral cristã. 4- Com estes pilares o espiritismo constrói uma explicação para a diversidade de experiências humanas, dizendo que as mesmas resultam do progresso conseguido pelas almas na sua peregrinação por várias vidas. 5- Do cristianismo donde tira a moral, ele repudia a divindade de Jesus, a pessoalidade do Espírito Santo (substituído por um colectivo de espíritos superiores) o Juízo final e as suas consequências: a separação para a eternidade entre escolhidos e rejeitados, atirados para locais distintos – inferno e Paraíso – onde permaneceriam eternamente. Em alternativa o espiritismo escolhe a reencarnação como a solução para a recuperação dos pecadores de modo a que todos no fim fossem salvos 6- Como corolário de tudo isto o espiritismo visa a melhoria da humanidade e a passagem dos melhores para mundos mais adiantados onde desfrutariam da felicidade merecida. Há assim para ele não só diversas vidas como diversos mundos que estariam preparados para os diversos estágios de desenvolvimento das almas. 7- Como negam o castigo eterno também não aceitam a existência de Satanás e dos espíritos malignos. Isto também os distingue do cristianismo, pois eles apenas aceitam espíritos inferiores e pouco desenvolvidos que embora fazendo o mal no presente podem ser recuperados para o bem no futuro. Céu, Inferno, Penas e Prémios Para o espiritismo não existe Céu nem Inferno. Em vez do Céu ou Paraíso existem diversos mundos adaptados à evolução espiritual de cada um. Assim o espírito estaria limitado a um determinado mundo que corresponderia ao seu desenvolvimento espiritual. O Inferno também não existe como local onde permaneceriam os condenados. O inferno seria segundo Kardec o estado de infelicidade em que o espírito inferior se encontra como resultado do seu mau comportamento. Estas concepções resultam do facto de que o espiritismo não aceita um julgamento final que determina o futuro dos espíritos, pois ele defende que Deus na Sua justiça teria de permitir novas oportunidades a cada um de se aperfeiçoar até ser merecedor do estado de felicidade eterno. Esta afirmação implica que como a oportunidade estaria na posse do homem seria este e não Deus a determinar o futuro. Nesta concepção espírita que diverge acentuadamente do cristianismo (que o espiritismo diz seguir) onde existe um Juízo Final onde todos serão julgados e onde é traçado o destino de cada um, há aspectos que mereceriam explicação e que aparentemente ela não é dada. O ser humano morre. Num primeiro momento há como que uma perplexidade com o novo estado, sendo que a duração desta “surpresa” depende do conhecimento e entendimento que o ser teve durante a sua vida. Assim há quem demore a aceitar a sua nova condição apegando-se ao local e pessoas com quem vivia e os que conhecendo a nova situação se desligam com mais facilidade do que deixaram para trás. Uma vez ciente da sua nova condição o espírito é sujeito a um julgamento do que fez durante a sua vida. Esse julgamento determinará não só o estado em que permanecerá como o destino da nova reencarnação. Mas quem julga? Diz Kardec: “O esquecimento do ocorrido em vidas passadas só ocorre quando o homem reencarna. Uma vez liberto do invólucro corporal, ele recupera a lembrança do seu passado; ele pode julgar então o caminho que fez e o que ainda lhe resta fazer.” É bem claro que o julgamento é feito pelo próprio acerca de si mesmo, o que convenhamos não garante uma sentença justa. O próprio Kardec assume que o espírito quando morre leva consigo todo o conjunto de emoções e conhecimentos adquiridos nesta vida. Como pode tal ser, ter um julgamento isento sobre si próprio? A benevolência seria a marca de tal julgamento. Poucas pessoas fariam de si um juízo isento. Diz Kardec: “As penas não são iguais, mas variam consoante a natureza e grau das faltas cometidas e são quase sempre punições semelhantes à falta cometida. Assim um assassino seria obrigado a permanecer no local em que cometeu o crime e ver as suas vítimas diante dele.” Também é difícil aceitar esta punição como a correcta, pois a simples lembrança do acto praticado não constituiu por si uma punição, pois isso já acontece na vida de cada ser humano a que se dá o nome – caso haja dor – de remorso. Mas há pessoas que não sentem qualquer remorso e por isso a lembrança não as pune nem modifica. Caso contrário como explicar os assassinos profissionais? Uma vez determinada a sentença o espírito viverá no ambiente condizente com o que tiver sido determinado. Não é difícil compreender que o lugar dos espíritos inferiores seja diferente do dos espíritos superiores. E continua Kardec: “…O esquecimento temporário é uma benesse da Providência; a experiência é muitas vezes adquirida por provas rudes e expiações terríveis, cuja lembrança seria muito penosa e se viria a juntar às dificuldades da vida presente”. O Purgatório Uma das facções do cristianismo – a católica – inclui na vida após a morte a possibilidade de um purgatório onde os espíritos que tendo encetado nesta vida uma obediência a Deus não tenham “terminado esse caminho”. Seria como uma segunda oportunidade, baseada no sofrimento, mas não necessariamente no arrependimento. Nada nas palavras bíblicas ou evangélicas fundamenta este entendimento. Mas esta teologia católica merece várias críticas: Antes de mais procura elaborar doutrina sobre algo de que não tem conhecimento divino. Jesus Cristo completou o conhecimento sobre o Além não sendo permitido acrescentar seja o que for. O que poderemos elaborar é entendimentos sobre o que foi dito. E o purgatório é claramente uma inovação ilícita. Como só vão para o Purgatório os imperfeitos estando isentos os perfeitos há necessidade de um julgamento prévio de cada um feito…na Terra, o que contraria as palavras de Jesus que nos proibiu qualquer julgamento. Depois porque ninguém consegue ser perfeito por si mesmo dado o que nos é exigido. E daí a necessidade da Graça que colmata o que nos falta. É o acompanhamento pelo Espírito Santo que nos é dado para suprir as nossas deficiências. O crente “apenas” tem de se apegar a Jesus com todas as suas forças pela fé (incluindo-se aqui a obediência à Palavra) e tudo o mais acontecerá. Assim se compreende que o ladrão da cruz tenha sido absolvido “in extremis” embora com certeza imperfeito. E Jesus não lhe prometeu o purgatório mas o Paraíso. O Purgatório não tem assim base evangélica, nem provém de informação divina. É uma construção humana que talvez beneficie algumas práticas religiosas mas sem fundamento em Deus. Sabemos pela prática católica que os diversos comércios que ela exerceu com os bens espirituais – venda de indulgências, cobrança pela ministração de sacramentos como baptizados, casamentos, missas pelos mortos etc. – tem-lhe granjeado proveitos que lhe permitiram erigir um império que a destaca no mundo dos homens (quanto ao outro, Deus julgará). O desvio da Verdade que ela escolheu – embora infelizmente não seja a única – talvez origine o estado de coisas predito por Jesus: “Quando eu voltar por acaso encontrarei fé?” ( Lucas 18:8) Como se depreende facilmente este esquecimento da existência passada que ocorre na reencarnação e que volta quando em espírito, é conveniente à doutrina espírita, pois serve para “explicar” o porquê de ninguém se lembrar de existências passadas. Kardec diz que esse mecanismo é para aliviar a pessoa quando reencarnada de más lembranças de vidas anteriores que a fariam sofrer. Outro problema do espiritismo é a explicação da existência do Mal. Como eles não aceitam a existência de Satanás – figura meramente simbólica mas sem existência real – donde provem o Mal? Kardec diz que o mal nasce da desobediência do homem às leis de Deus; se é certo que o homem alimenta o Mal com a sua desobediência já não é possível dizer que essa desobediência cria o mal; a desobediência sendo um exercício do livre arbítrio nada cria mas apenas escolhe. E logicamente só pode escolher entre o que existe, pelo que o Mal já tem de existir antes da desobediência. Devemos levar sempre em conta que os fundamentos da doutrina espírita radicam na informação dos espíritos e no raciocínio humano. Ambos falíveis e sempre carentes de comprovação. Sujeitos mesmo a evolução, pois lá tudo é progressivo. O antagonismo com o cristianismo é evidente. Neste a morte leva o espírito para uma nova realidade onde espera pelo juízo final num tribunal presidido por Jesus Cristo no fim dos Tempos. Enquanto se espera pelo juízo final as almas estarão em situação diferente de acordo com a vida que tiverem levado. Haverá então separação entre os que tiverem praticado o bem e os que tiverem escolhido o mal. O que no cristianismo separa o Bem do Mal é a obediência a Deus sobretudo ao que Jesus disse e fez na Terra. Como todo o conjunto de vivências acompanham o ser que morre, ele sofre ou beneficia no Além do ambiente que os seus actos houverem criado nesta vida. Dito de outro modo os do lado do Bem terão a paz e o descanso que as suas acções merecem; pelo contrário os do lado do Mal continuarão a sofrer de um estado de infelicidade consequente do mal feito. Como Deus avisara os homens “os perversos não terão paz” – nem no outro mundo. No mesmo sentido Jesus anunciara aos seus discípulos uma Paz que acompanharia os eleitos. A Paz que eles merecem nesta vida acompanha-os no Além. No cristianismo não há reencarnação, mas há vida, pois como Jesus disse “para Deus todos vivem”. (Lucas 20:38) O espiritismo na sua ânsia de se envolver com o cristianismo procura “provar” a existência de reencarnação no texto bíblico mas sem sucesso pois não existe. O único exemplo a que se agarram e que poder deixar alguma dúvida é o caso de João Baptista que teria sido um Elias redivivo. Jesus que confirma a profecia não diz que João e Elias são o mesmo espírito, mas sim que João tem semelhanças com Elias pois vem “no poder e no espírito de Elias” (Lucas 1:17). Portanto não se trata da mesma pessoa mas sim de duas pessoas com alguma semelhança na sua manifestação terrena. Ora na reencarnação nunca há semelhança entre as duas existências que aliás teriam por definição de ser diferentes: ou porque o espírito teria evoluído o que determinaria uma existência posterior melhor ou porque não tendo reparado todos os erros cometidos necessitaria de estacionar nas mesmas experiências até as saber superar. A Fé Allan Kardec considera que a fé tem de ser consistente com a razão. Diz ele: “Não há fé inabalável senão a que pode encarar face a face a razão em todas as épocas da humanidade. A fé necessita de uma base, é a inteligência perfeita daquilo em que se deve crer; para crer não basta ver é preciso sobretudo compreender. A fé cega não é mais deste século… porque ela quer se impor e porque exige a abdicação de uma das mais preciosas faculdades do homem: o raciocínio e o livre arbítrio” Contrariamente ao que diz Kardec a fé preenche o vazio deixado pela razão. A fé vai para além da razão e prescinde dela. O que acontece é que por vezes para explicarmos a nossa fé usamos argumentos racionais. A razão pode sustentar a fé, tentar explicá-la mas nunca balizá-la. Quando Jesus andou sobre as águas e chamou Pedro para o acompanhar Pedro não usou a razão pois esta dir-lhe-ia que o que via era impossível. Pela razão ele nunca abandonaria o barco, mas por fé saiu e andou sobre as águas. Conta o evangelho que depois Pedro teve medo, a dúvida assaltou o seu espírito e começou a afundar. Fez exactamente o que Kardec aconselha: a razão tentou avaliar a fé. Foi pela fé que inúmeras testemunhas cristãs ao longo da história deram a sua vida, coisa que a razão nunca aconselharia. Foi pela fé que Abraão obedecendo a Deus foi oferecer o seu filho Isaac em holocausto. Toda a razão, toda a sabedoria e conhecimento humano não o aconselhariam. Uma fé que move montanhas é por definição contrária a qualquer razão e no entanto Jesus Cristo anunciou-a. Penso que Kardec confunde convicção com fé. A convicção nasce da razão e sustenta-se por ela. Kardec com os olhos demasiadamente ocupados na vida da terra, entendeu a fé como era divulgada pela igreja do seu tempo, que por diversas vezes usava o argumento da fé para vergar a vontade dos seus seguidores. À mínima desobediência às suas ordens as igrejas brandem o argumento da fé. Essas igrejas assumem-se como representantes de Deus na Terra e como não dispõem de poderes espirituais que o comprovem procuram pela palavra assustar os crentes para conseguirem a sua submissão. Para isso a igreja cria uma doutrina cujos intuitos são o domínio dos crentes e o uso dos mesmos para os seus interesses, e “carimbaa” como artigo de fé. Fé deixa de ser para a igreja (católica e não só) a fé em Deus requerida por Jesus para ser a crença na infalibilidade da igreja. As distorções criadas por esta deriva doutrinária causaram muitos problemas e iniquidades no seio do ambiente religioso. E foi isto que suponho Kardec quis combater usando a razão. Mas se isso for verdade então deve-se concluir que Kardec nunca soube o que era a fé, nem nunca teve fé em Deus. A comunicação com os espíritos O pilar principal do espiritismo e que o distingue é a comunicação com os seres mortos. Segundo a doutrina espírita tal comunicação é possível embora sujeita a requisitos: haver um médium, e disponibilidade de um espírito para “conversar”. Para o espiritismo o homem é composto do corpo físico, da alma e do espírito. Quando o espírito abandona o corpo passa para outro estágio acompanhado da alma e envolto em algo que ele designa de perispírito, como uma espécie de corpo fluídico, diáfano e invisível. Este é o meio pelo qual os espíritos comunicam com os médiuns que como todo o ser humano também possuem esse perispírito. Como reconhecer o espírito que se apresenta numa sessão espírita? Normalmente é o próprio espírito que se identifica. Mas o mesmo espiritismo adverte que o espírito inferior muitas vezes mente acerca da sua identidade e imiscui-se nas sessões espíritas com o intuito de perturbar e enganar os presentes. Por isso o primeiro trabalho do médium é procurar distinguir o espírito que se lhe apresenta. Por aqui se vê a base movediça em que assenta o espiritismo, pois tudo depende de avaliação humana que não pode ser comprovada, mas que apenas se deduz do que vai acontecendo. Mas o próprio Kardec assume que mesmo espíritos superiores que sempre aparecem com bons intuitos – ao contrário dos inferiores – podem assumir outra identidade que não a própria. Só que Kardec não explica como é que o médium consegue descobrir que o espírito superior que lhe aparece é outro que não aquele que diz ser. Kardec alega que o espírito superior usa desse estratagema para facilitar a vida ao médium assumindo a identidade de um espírito que ele já conheça. Mas se levarmos em conta a veracidade de todo o processo não fica tudo muito comprometido? Porque é que espírito se disfarça e não se assume com a sua verdadeira identidade embora desconhecida da pessoa com quem fala? Outra nota curiosa nestas comunicações espíritas é que as mesmas usam diversos meios mas nunca a voz. Ou através da movimentação de mesas, ou conforme dizem pela utilização do médium para escrever a mensagem ditada, mas nunca através de uma voz audível. O conteúdo da mensagem transmitida está de harmonia com a qualidade espiritual do espírito comunicador. Enquanto o médium deve afastar espíritos que apenas se querem divertir ou perturbar a sessão espírita, deve acolher os que pela sua superioridade espiritual possam trazer informações ou conselhos úteis. O grande problema está na fiabilidade da informação. Um espírito superior deveria ser digno de toda a confiança, mas parece que nem sempre isso acontece pois é preciso estar sempre alerta sobre o teor da comunicação e a identidade de quem comunica. Kardec também nos informa que o espírito superior apenas diz o que quer e não é condicionado pelo que lhe perguntam. Este ponto pode tornar a comunicação desinteressante, pois por princípio a consulta visa receber informação que seja útil para quem a recebe. Kardec escuda-se no facto de o espírito ao não responder o faz ou porque não sabe ou porque entende não poder revelar o que sabe. O facto de não saber já é uma grande informação pois confirma que os espíritos são limitados no seu conhecimento. O que nos indica também que a informação que dão também está limitada pelo que o espírito conhece. O que não nos tranquiliza muito. Por outro lado o facto de omitir alguma informação leva-nos a perguntar o porquê. Que haverá de tão secreto que apenas se possa saber no domínio dos espíritos que os humanos não possam saber? Acontecimentos futuros? Não o serão porque os espíritos não têm acesso ao futuro como não o têm os humanos. Kardec levanta a ponta do véu: é para não facilitar a vida a humanos preguiçosos que terão de se esforçar por obtê-lo na terra. Isto revela outra pedra basilar da doutrina espírita: o mérito. Nada se consegue sem mérito nem é justo que se consiga. O determinismo espírita diz: toda a má acção será punida e recompensada a boa. Não se pode sair disto. Mais uma diferença em relação ao cristianismo em que a Graça e o perdão são pedras angulares. O perdão que foi exercido por Jesus em inúmeros episódios que é divino também nos é exigido na relação com o nosso próximo. E o perdão dissolve o mérito. O perdão é justo: o divino porque atende à fraqueza humana por si só incapaz de fazer o bem; o humano porque é a justa compensação dos nossos erros perdoados. A fragilidade deste método de obter informações está nas próprias palavras de Kardec: “Há no mundo dos espíritos a mesma diversidade de ideias, conceitos, opiniões e mentalidades que existem na Terra; eles transportam consigo a sua cultura adquirida na Terra; daí o cuidado de examinar o conselho que um espírito dê sobre algum assunto terreno” E mais adiante: “Quanto aos espíritos esclarecidos eles ensinam-nos muito, porém no limite das coisas possíveis, e não convém perguntar-lhes o que não podem ou não devem revelar; é preciso que nos contentemos com o que nos dizem; querer ir além disso, é expormo-nos às mistificações dos espíritos levianos sempre pronto a responder a tudo. A experiência ensina-nos a julgar o grau de confiança que lhes podemos conceder”. Como se vê muito respeitinho e contenção não vá tudo resvalar para o torto. Como encara o cristianismo a comunicação com o Além? No Antigo Testamento, Moisés estabelece uma pena capital - para quem consultar mortos - por ordem do próprio Deus. (Levítico 20:27) Mas temos de reconhecer que ao longo de toda a bíblia há inúmeros contactos e comunicações com espíritos mas que não são de carácter mediúnico pois são protagonizados por anjos que trariam uma comunicação do próprio Deus. Mencionando apenas o Novo Testamento é assim que Zacarias sabe do nascimento de João Baptista, que Maria sabe do nascimento de Jesus, que as mulheres (Mª Madalena e outras Marias) no sepulcro sabem da ressurreição de Jesus, etc. Também é através de anjos que Pedro é liberto da prisão. (Actos 12:9) Estas comunicações distinguem-se sempre pelo facto de o contacto além de visual ser audível: o espírito fala com o ser humano o que não acontece com o médium (pelo menos nas experiências referidas do Kardec) Outra comunicação espiritual revelada no Novo Testamento está no aparecimento de Jesus a Paulo às portas de Damasco. (Actos 9:4) Jesus fala com Paulo e as palavras são ouvidas pelos seus companheiros de viagem. (Actos 9:7) Também nas diversas aparições de Jesus a Paulo, há palavras de conforto e encorajamento. Portanto o espírito fala. No relato dos evangelhos mais do que uma vez é audível uma voz quando Jesus está presente com outras pessoas e todas ouvem “Este é o meu filho amado a ele ouvi” (Marcos 9:7) No episódio da Transfiguração de Jesus quando ele manifesta a 3 discípulos a sua majestade divina é relatado que Jesus fala com Elias e Moisés e a conversa é também ouvida pelos discípulos. (Mateus 17:3- 5) Não vale a pena ir ao Antigo Testamento para referir comunicações frequentes e sempre semelhantes. Jesus já afirmara que para Deus todos vivem, estejam em corpo físico ou não. Por isso esta comunicação não pode servir de base ao espiritismo pois nem é feita através de médiuns e tem sempre iniciativa em Deus. Nenhum dos casos revela que algum humano tenha chamado um espírito para que lhe aparecesse e com ele dialogasse. A iniciativa é sempre divina. Só Deus saberá quando essa manifestação é necessária e conveniente. Outra manifestação espiritual que acompanha o cristianismo é a prometida por Jesus: o Espírito Santo. Ele é apresentado como um auxiliador com a função de amparar proteger, ensinar e guiar os seguidores de Jesus. (João 14:26) É um ente tão sublime e importante que o próprio Jesus nos informou que qualquer blasfémia proferida contra o Espírito nunca teria perdão, nem neste mundo nem no porvir. (Marcos 3:29) O Espírito Santo tem uma manifestação toda própria e diversa das atrás mencionadas dos anjos. Ele não é visível (o que ocorria com os anjos) e actua essencialmente pelo pensamento. É o ES que anuncia a Pedro que enviou gente da parte do centurião Cornélio para o chamar, (Actos 10:19) é o mesmo Espírito que anuncia a Paulo a ocorrência de “cadeias e tribulações” no seu futuro (Actos 20:23). Nunca se diz que há uma voz audível, mas há informação que chega ao destinatário através do pensamento. No mesmo sentido Jesus afirmara que o mesmo ES ensinaria os seus seguidores como responder quando questionados pelo mundo. (Marcos 13:11) Ora intui-se que esta comunicação é concedida através do pensamento. O pensamento recebe a resposta que depois a boca profere. Para encanto dos espíritas há apenas um caso relatado na Bíblia em que há o recurso a uma médium e portanto, nos moldes descritos pelo espiritismo. É o caso de 1ºSamuel 28. O que é pouco para fundamentar a defesa do espiritismo das sessões espíritas. O que se relata em 1º Samuel 28? É um episódio protagonizado por Saúl rei de Israel. O profeta Samuel já tinha morrido. Saúl normalmente socorria-se do conselho desse profeta quando precisava de orientação. Saúl encontrava-se rodeado pelo exército filisteu que se preparava para o atacar. Atemorizado com a dimensão do adversário procura em desespero o conselho de alguém. É assim que consulta uma médium, que a pedido de Saúl chama o espírito de Samuel. A visão que a médium tem de Samuel assusta-a pois vê um ser envolto em grande luz, que lhe faz parecer um deus. É estabelecido então um diálogo entre o espírito de Samuel e Saúl (que não é mencionado se directamente ou através da médium). Samuel revela a Saúl o desastre militar que o espera levando-o a ele e aos filhos para a morte. Saúl fica bastante combalido com a revelação e vai-se embora. Este episódio que é desvalorizado por alguns ramos cristãos que o tentam negar, dizendo que tal não ocorreu e que quem aparece nestas sessões espíritas são demónios que se substituem às pessoas que dizem representar. É uma atitude muito comum em todos os que sofrem o duro revés de ver a realidade desmentir as suas convicções. E mais uma vez o seu argumento é que tendo em consideração a proibição de Deus Ele não o permitiria. Como fazia Kardec quando não se tem argumentos para sustentar o que se defende recorre-se a Deus, atribuindo-lhe desígnios, por iniciativa própria. Mas ao contrário do que dizem o que nos indica a proibição de Deus é que tal é possível; e que a proibição de Deus não impede o homem de errar, pois caso contrário ninguém pecaria. Como curiosidade acrescente-se que são as mesmas facções cristãs as que afirmam que tudo o que a Bíblia diz é sagrado e intocável. Uma Experiência Pessoal Em tempos antes da minha mudança para o Brasil, e em época em que o meu cristianismo padecia de conhecimento e desenvolvimento, crente como os demais que qualquer morto teria conhecimento do futuro, fui a uma sessão espírita. A médium era uma amiga da minha mãe que me acompanhou. Na sessão participaram 4 pessoas que além de nós os dois e da médium tinha uma amiga da mesma. Na sessão era usada uma mesa tripé, que permitia a resposta dos espíritos pelo toque de cada pé conforme o que fora estabelecido. Foi uma sessão do ponto de vista dos defensores do espiritismo dramática pela algazarra e brincadeira que vários espíritos promoveram. Seriam segundo Kardec espíritos inferiores. Na mesma classificação seria uma sessão que revelaria um mau médium, pelos espíritos que atraía. De qualquer modo para mim não foi de todo inútil pelo que a seguir ocorreu. A mesa movimentava-se consoante o espírito que se apresentava, muitos nem se identificando, e o testemunho que dou é que ela não era movida pela força de nenhum dos presentes pois chegava a surpreender pelos movimentos que fazia. Num momento de acalmia estando todos sentados à mesa, à espera do que ocorreria a seguir, isto é quem se apresentaria, a mesa move-se lentamente inclinando-se na minha direcção. A médium pergunta quem era que ali estava. E o espírito identificou-se como o meu pai, que tinha morrido cerca de 2 anos antes. A minha mãe empalideceu, pois dada a sua constituição psicológica, estes ambientes impressionavam-na bastante. Ainda mais quando o espírito presente era o do marido. Nada foi dito de interessante nem nenhuma informação reveladora foi dada. A não ser o de ele ter dito que queria que lhe acendessem uma vela, pois queria luz. Isso na altura sugeriu-me que o ambiente em que ele estaria não seria o mais luminoso e portanto o melhor. Este relato que recordo passados muitos anos, mas que ficou bem gravado na minha memória, não me deixou dúvidas acerca da comunicação com os mortos. Nunca mais repeti a experiência, acima de tudo porque o meu ingresso no cristianismo disso me afastaria. Nem procuro mais repetir tal experiência, embora reconheça que são reais. A minha obediência a Deus disso me afasta. Mas além da informação mais pessoal e familiar o resto do que vi deixou-me a firme convicção de que a irreverência, a infantilidade e a vulgaridade existem nos dois mundos e os espíritos de pessoas mortas não são melhores do que quando elas estavam vivas, nem possuem mais conhecimentos do que aqui possuíam. Que concluir disto? Neste episódio o que me estranha é o aparecimento de Samuel, pois como qualquer espírito tinha a opção de não aparecer. E sinto dificuldade em entender como Samuel conhecendo a proibição de Deus, se prestou a este esclarecimento a Saúl. E até pode levantar a pergunta se no outro mundo os espíritos podem pecar. Pois se o espírito só aparece porque quer, é porque mantém a vontade e livre decisão que na Terra tinha. Assim sendo é porque é responsável pelos seus actos. Tudo isto leva a questões para as quais não tenho resposta. A informação disponível no evangelho e outros livros que reputo como as mais credíveis, nada refere a respeito. Uma coisa é certa: a consulta ocorreu e a informação dada a Saúl por Samuel concretizou-se, pois Saúl perdeu a batalha morrendo com os seus filhos na mesma. A punição com a morte de tal prática resulta a meu ver da ofensa de que Deus é objecto pelo Seu servo que em vez se dirigir a Ele prefere um oráculo enganoso. A possibilidade de consulta do próprio Deus é que fundamente tão grave punição. A reencarnação De todos os alicerces do espiritismo, este é talvez o mais frágil e questionável. A necessidade da reencarnação aparece na lógica espírita como a consequência que eles tiram da justiça de Deus, considerando que esta implica essa solução. Diz Kardec: “Um espírito encarna num meio que lhes é simpático e que esteja em relação com o seu grau de adiantamento. Um chinês, por exemplo, que progrediu suficientemente, e não acha na sua raça um meio que corresponda ao grau que atingiu, encarnará num povo mais avançado. Portanto uma nação avança pela atracção que exerce sobre os melhores espíritos para que eles encarnem no seu meio”. Pelo que nos diz Kardec quem decide da reencarnação, onde se efectuará e quando acontecerá é o próprio espírito. Esta autonomia e poder decisório dado a qualquer espírito contraria toda a ideia de justiça que dizem fundamentar a reencarnação. Para além da opinião que tinha dos chineses Kardec confere a cada espírito um poder que ele não tem quando encarnado, e não explica porquê. Também não resolve questões que se podem colocar acerca da oportunidade da reencarnação. Esta depende da taxa de natalidade da região ou país onde se pretende reencarnar. Diria mesmo até da própria família. E se a taxa de natalidade da região escolhida foi muito baixa e houver muitos candidatos? E se a família para onde se quer ir não tiver filhos? Ou estarão os espíritos na sua escolha de reencarnação condicionados pelos índices de natalidade dos diversos povos? Para o espiritismo a reencarnação é vista como mais uma oportunidade de progresso espiritual e por isso o espírito escolhe o ambiente mais propício a esse fim. Acontece que a evolução do ambiente por vezes sofre reviravoltas que o conduzem num caminho que não era previsível quando o espírito fez a escolha. Imaginemos uma guerra ou grande catástrofe que altere tudo por muito tempo (por vezes mesmo para além da duração da vida terrena do reencarnado). Se isso ocorrer fica frustrado o objectivo da reencarnação. Kardec constrói a reencarnação assente num único pilar: a decisão do espírito sobre a sua vida futura. Para além de ser uma construção de difícil sustentação, pois atribui a um ser limitado (e cheio de erros) um poder não condizente com isso, também não leva em consideração a quantidade e o poder das inúmeras forças que operam no destino de qualquer ser humano quer as determinadas pela natureza como pelo conjunto de todas as outras decisões humanas que tornam todo este “projecto de reencarnação” em algo de difícil concretização. A citação acima referida ainda contém outro aspecto: a da equiparação entre progresso espiritual e material ou civilizacional. E as duas realidades nada têm a ver uma com a outra. Enquanto para o espiritismo um espírito superior procura uma civilização superior para reencarnar, pois seria o seu ambiente, Jesus escolhe os seus discípulos entre os incultos e iletrados. Não optou pela elite intelectual do seu tempo. A explicação é simples: o espírito não precisa de nada que seja humano para brilhar e prosperar. Nem sequer de um ser humano, quanto mais da inteligência do mesmo. Recorde-se que até as pedras podem ser usadas como disse Jesus em resposta aos que pediam que ele silenciasse os que o aclamavam na entrada em Jerusalém (Lucas 19:40: “Asseguro-vos que se eles se calarem as pedras clamarão”) Espírito e matéria visam objectivos contrários. A acumulação de riqueza e conhecimento que suporta uma civilização próspera é contraproducente para a caminhada espiritual que na orientação de Jesus visa o desprendimento e a ausência de trunfos humanos. Daí que a sua escolha para apóstolos de seres humanos destituídos dos requisitos louvados no mundo mostra que tal não só não é necessário como até pode ser um “tropeço”. O desenvolvimento humano atrai e prende à Terra; o espiritual liberta e projecta para um Reino fora da Terra. Uma apreciação final O espiritismo é uma construção humana. Fundamenta-se em conhecimentos humanos complementados por informações do Além. Sabendo que ambos os conhecimentos evoluem, é uma doutrina em permanente construção. Só por isso é algo que não pode ser tomado por fé, mas por exame. Assim o espiritismo está afastado de qualquer infalibilidade que normalmente deve acompanhar uma religião. O cristianismo sendo de origem divina, foi transmitido por Jesus Cristo. Dada a sua origem e o carácter infalível e por isso imutável do mesmo, deve ser aceite por fé, não dependendo da razão. As diferenças entre ambas as doutrinas aprofundam-se como o exame mais pormenorizado. O espiritismo, dada a sua origem humana preocupa-se sobremaneira com a evolução e progresso da humanidade e dos seres humanos. Dado que se assume como incorporando em si a ciência e alguma filosofia, não surpreende este apego ao humano. Mais ainda: pretende melhorar o mundo, acrescentando aos instrumentos humanos a informação recolhida dos espíritos. Esta sua origem condiciona toda a construção da sua doutrina que retira tudo o que possa contrariar esta sua preocupação como o progresso humano. A defesa da reencarnação é disso exemplo, pois retirando divindade a tudo que não seja o próprio Deus, e assumindo a necessidade de salvar todo o ser humano, o espiritismo apenas poderia conceber uma teoria em que retirasse poderes a Deus e os desse a um ser humano senhor do seu futuro e totalmente responsável pelo seu destino. É neste desenvolvimento que por exemplo a ideia de pecado (ou erro) apenas abrange na moral espírita, o pecado exterior ou feito contra o outro. E daí a importância que dá à caridade. Para ele não existe o pecado interior, aquele que se manifesta através de pensamentos, intuitos ou desejos. Também o condicionamento da fé pela razão. É esta que valida aquela. No confronto entre ambas prevalece para o espiritismo sempre a razão. Exactamente por ser uma doutrina humana. No espiritismo não existe nada de transcendente. As únicas realidades não visíveis que aceita são a de existência de espíritos que poderão ser contactados e cujo diálogo pode ser útil para o entendimento de outra realidade com que todo o ser humano um dia se confrontará. E nesta prática termina a espiritualidade do espiritismo. Nunca é assumida uma determinação com origem no próprio Deus. As leis que foram determinadas por Deus para a criação são as que a ciência vai revelando e que regem a Natureza. Para além dessas reconhece parte das leis morais cristãs (as que se referem à relação com o próximo) mas como nega a divindade de Cristo retira-lhe a proveniência divina e considera-as como boas para a humanidade. Para o espiritismo o homem é o centro de tudo e Deus é apenas uma necessidade racional para explicar o inexplicável. No mesmo sentido está o “tratamento” que ele dá a Jesus Cristo. Para o espiritismo Jesus Cristo deixa de ser divino – Filho de Deus – para ser mais um espírito superior. A negação da divindade de Jesus afasta decisivamente o espiritismo do cristianismo. Aliás se o espiritismo não aceita a divindade de Jesus e a sua proveniência do próprio Deus e por Ele enviado à Terra, então considera que Jesus é um enganador e mentiroso pois assumiu algo que não era. E depois de tal “qualificação” o espiritismo vai municiar-se da moralidade cristã para preencher a sua doutrina? Tal construção ideológica nunca poderá ser uma religião. Vemos o oposto no Cristianismo. É de uma “matriz” totalmente diferente. Embora dirigido ao homem não depende deste nem para a sua elaboração nem do seu juízo ou aceitação. É transmitido como a Verdade que deverá aceite ou rejeitada. E a aceitação requer inevitavelmente a fé. O cristianismo não procura convencer mas vencer. Não aceita nem precisa de colaboração humana na sua construção: é apresentado pronto e definitivo. O cristão deve após isso divulgar a verdade e não procurar argumentar com a sua valia. Há no entanto uma componente que apoia esta verdade: o poder espiritual. Jesus demonstrou-o e através das curas e milagres permitiu a muitos experimentarem o poder do Reino que lhe era anunciado. As duas coisas estão ligadas e são inseparáveis. Jesus sempre associou à divulgação da Palavra o exercício de curas e milagres. A prática “cristã” dos tempos posteriores afastou-se desta verdade e aproximou-se decisivamente do ser humano. E a partir daí tudo mudou: o que era certo deixou de o ser, mudaram-se alicerces e fundamentos e adaptou-se tudo à necessidade do momento. As igrejas assimilaram o mundo e acabaram indistintas dele. O encanto do dinheiro e do poder acabou por arrastar ainda mais a igreja para o centro do mundo, transformando a sua doutrina em mais uma aquisição cultural. O divino desapareceu e apenas subsiste o humano o que permitiu que fosse aceite ou tolerado mesmo pelos não crentes. Com a sua roupagem humana e por causa disso deixou de ser imutável e passou a evoluir. Tendências e orientações surgiram no seu meio levando às divisões que caracterizam os negócios humanos e acabando não raras vezes em carnificinas. Mas apesar desta evolução negra das igrejas nem assim o espiritismo se aproxima do cristianismo. Toleram-se apenas, dado se considerarem civilizados. Mas a necessidade que o ser humano tem de Deus não é satisfeita e o povo continua errante e sem rumo atirado para “explicações” com que as várias doutrinas humanas procuram saciá-lo. Resta terminar com uma questão: Alan Kardec morreu de ataque cardíaco em 1869. Há portanto cerca de 152 anos. Os seus seguidores esforçaram-se por divulgar a sua obra e escritos. Consideram-no um guia. Mas Kardec - e dado a pessoa que se trata – criador e defensor do espiritismo a que dedicou a sua vida, não contactou ainda do Além os seus seguidores? Não lhes deu qualquer informação? Não deve faltar sintonia entre os seguidores e o próprio, nem falta de vontade de comunicar. Então porque tal silêncio? Seria uma oportunidade única de alguém que defendeu uma prática quando residente neste planeta, agora pudesse completar essa informação com dados do Além. Será que Kardec encontrou uma realidade diferente? Será que afinal entendeu que não há a evolução no outro mundo que ele descreveu nos seus livros? Será que percebeu que a reencarnação não passa de uma hipótese académica para completar uma doutrina?